“Pavilhão Literário Cultural Singrando Horizontes”

 

Jangada de Versos do Ceará (Francisco Pessoa)

Posted: 04 Apr 2014 08:43 AM PDT

Francisco José Pessoa de Andrade Reis
Fortaleza/CE (1949)

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DE PESSOA PRA PESSOA
Poesia é um sonho e, se sonhado,
Sobre nuvens volutas, pictóricas,
Rédeas soltas sem bridas, metafóricas,
Faz do poeta um ser místico e alado.
Quem o lê, leia certo ou leia errado,
Sempre os versos encontram o seu intento…
Lamentar cada um com seu lamento,
E sorrir cada um com seu sorriso,
Coração de poeta é sem juízo
E a razão de fingir é seu talento!
QUAL DAS CARNES?
Ó meu amigo Garcia
És professor renomado
Que fala um tanto pausado
Na tristeza e na alegria
Tua voz mansa irradia
Uma paz de dó a dó
Responda qual a mió
Para a gente encher o bucho
Se o churrasco do gaúcho
Ou a carne de Caicó.
(Décima feita ao Prof. Garcia, de Caicó/RN)
CADA PASSO É MAIS UM SONHO
AO LONGO DO CAMINHAR

Esteja alegre ou tristonho
O poeta enxerga a vida
Tal a terra prometida…
Cada passo é mais um sonho.
Chega ao destino risonho,
Pelo prazer de rimar
E antes mesmo de apear
Em pensamentos, imerso,
Olha pra trás, vê seu verso
Ao longo do caminhar.
Usei todos os atalhos
Que encontrei pelo caminho,
Fiz de quando em quando um ninho,
Fiz de estrelas agasalhos.
Os meus cabelos grisalhos
Tingidos pelo luar,
Retratam bem meu andar…
Embora um tanto tardonho,
Cada passo é mais um sonho
Ao longo do caminhar.

NO MEU LAR SOU EU QUEM MANDA
QUANDO A PATROA VIAJA!

Sou chefe até do meu chefe
Sou o grito que calou
Se você pensa quem sou
Me beije e lhe dou tabefe.
No carteado sou blefe
Dentre as cobras sou a naja,
Quer me ver doido? Reaja…
Mais brabo que urso panda,
No meu lar sou eu quem manda
Quando a patroa viaja!

AO POETA LUCIANO MAIA
Poeta, és parto do teu Jaguaribe
Artéria viva do sertão d’antanho
Tão seco ou cheio, do mesmo tamanho,
És liberdade plena que proíbe
O negar da verdade, diatribe,
Pois tua voz, poeta, em tom brejeiro,
Vem das vazantes do teu Limoeiro,
Vem do frescor do vento Aracati,
Que lá do Olimpo esbarra em nós aqui,
E à noitinha passa tão faceiro.
PALHAÇO
A vida se nos faz meros palhaços…
Sorriso solto num choro prendido,
Querer que é dado nunca agradecido
Saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
Embebedar-se tanto pra esquecer,
Sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
No picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
Imagem tão real quanto ilusória
Pranto da morte rindo pra viver!
Fonte:
REIS, Francisco José Pessoa de Andrade. Isso é coisa do Pessoa, em prosa e verso. Fortaleza: Tipografia Íris, 2013.
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A Jangada de Versos do Ceará já teve publicados anteriormente:
ANTONIO GIRÃO BARROSO Araripe (1914 – 1990) Fortaleza
ARTUR EDUARDO BENEVIDES – Pacatuba (1923)ARY ALBUQUERQUE Fortaleza (1934)
BATISTA DE LIMA Lavras da Mangabeira (1949)
CÂNDIDO ROLIM Várzea Alegre
CARLYLE DE FIGUEIREDO MARTINS Fortaleza (1899 – 1986)
CÉSAR LEAL (Francisco César Leal) Saboeiro (1924 – 2013) Recife/PE
DIMAS MACEDO Lavras de Mangabeira (1956)
DOM HELDER CÂMARA (Helder Pessoa Câmara) Fortaleza (1909 – 1999) Recife
EDUARDO PRAGMACIO DE LAVOR TELLES FILHO Fortaleza (1969)
FILGUEIRAS LIMA (Antonio Filgueiras Lima) Lavras da Mangabeira  (1909 – 1965)
FLORIANO MARTINS Fortaleza (1957)
HORÁCIO DÍDIMO PEREIRA BARBOSA VIEIRA Fortaleza (1935)
JOSÉALBANO (José d'Abreu Albano) (Fortaleza 1882-1923)
JOSÉ LINHARES FILHO (Lavras da Mangabeira , 1939)
LEONTINO FILHO Aracati (1961)
MÁRCIA THEÓPHILO – Fortaleza/CE (1940)
MAVIGNIER DE CASTRO (Antonio Mavignier de Castro) (1895 - 1972)
MYRIA DO EGITO (Fortaleza)
NATÉRCIA ROCHA (Natercia Carmen de Sales Rocha) Fortaleza, (1971)
NILTO MACIEL Baturité (1945)
NIRTON VENÂNCIO  – Crateús (1955)
QUINTINO CUNHA (José Quintino da Cunha) – Itapajé  (1875 -1943) Fortaleza
RACHEL DE QUEIROZ -  Fortaleza (1910 – 2003)
SOARES FEITOSA (Francisco José Soares Feitosa) Ipu (1944)
VIRNA TEIXEIRA Fortaleza (1971)

André Luiz Alvez (Dias Claros ou Cinzentos)

Posted: 04 Apr 2014 08:05 AM PDT

Nunca gostei de chuva. Quando os silvos impactante dos ventos anunciam dias cinzentos, me tranco em casa com receio da chuva que se anuncia.  Em dias assim, recordo de quando era criança. Ah, quando eu era criança... vislumbro nossa antiga casa, parece que ouço meus amigos me chamando pra brincar lá fora. Quero ir, me aproximo da porta, que não quer abrir, para meu desespero. E cai a chuva que nos obriga a ficar dentro de casa, eu, meus tios e os amigos que correram do terreno tentando escapar dos primeiros pingos grossos.  Era terrível, nossos brinquedos jogados lá fora e nada podíamos fazer.  Sem perceber, tirava à unha a casca de ferida na canela machucada de tanto brincar, não conseguia mais esperar que ela secasse por completo, fazendo o sangue tornar a escorrer. Logo alguém teve a idéia de fazer uns barquinhos de papel e num instante tínhamos à disposição uma frota inteira.  Dependurados nas estroncas da casa, cada um jogava seu barquinho na correnteza da água da chuva, que formou um veio d água abaixo da janela de madeira e ficávamos vendo os barcos partirem lado a lado. Hoje deslumbro aquela cena, que transformo numa alegoria da vida, como se eu fosse atirado junto dos barquinhos, naquela corrente de água sem fim.  E depois veio o sol, um convite para a diversão: corremos lá pra fora já armados dos galhos da árvore que caíram, fazendo deles lápis e desenhando um enorme círculo na terra molhada, um oco ao meio feito com o calcanhar, que se transformou na meta do jogo de bolitas, e assim o dia foi passando naquela alegria de criança. Vários dias claros e outros cinzentos vieram e cá estou perto dos cinquenta anos. O símbolo do remédio que tomo pra controlar a pressão é parecido com o carrinho de rolimã que tive quando criança. As rodas daquele brinquedo um dia se quebraram e o conserto que nele faltou ainda existe em mim. Se pudesse voltar no tempo, trocaria as rodinhas por outras novas, talvez de madeira, e o brinquedo voltaria a funcionar já no dia seguinte. Daria solução ao caso porque hoje, maduro e vivido, tenho respostas para quase tudo.  Certa vez pediram a Nelson Rodrigues um conselho aos mais jovens. A resposta veio certeira: "Envelheçam".  Não concordo. A maturidade não é nada boa, é cinza, começo do fim, basta olhar novamente para o remédio para controle da pressão, ou alisar os óculos que uso para ler, e o constante esquecimento de coisas pequenas. Bom mesmo é ser jovem, embora a experiência de vida nos torne mais astutos.  Hoje consigo farejar as marcas dos pés que se aproximam, percebo quando o assoalho, antes falho e de pedra bruta, se faz encerado e limpo e, assim, consigo distinguir um dia claro daquele outro cinzento, como nesse fim de tarde, quando um bando de passarinhos se recolhe no pé de limão que tenho no quintal, celebram o fim do dia e eu só espero que amanhã não chova. Detesto dias cinzentos.
Fontes:
O AutorImagem = Fabio Junior http://fabioinocente.blogspot.com

Pedro Du Bois (Navegando nos Versos) 3

Posted: 04 Apr 2014 07:59 AM PDT

APENAS
Você
      pode alcançar
      o inatingível
      mas não quer correr riscos
                         e não sabe gerenciar o tormento
                    ou se alegrar com pequenos gestos
apática
          aguarda a sua hora   
fosse o estopim e a corda
          ao redor do pescoço
ou a espoleta sob a pedra
a espera desglorifica o sentido
e a consciência cede ao impulso
                           em quase nada.
TERRAS

A terra entre mãos desperta
a forma e a fome. Sintetiza
e reserva o espaço ao vazio.
Escorre a terra na conquista
           e reconhece na placa
            o nome antepassado.
A terra sobre o corpo em mortalha
na batalha vencida pelo cansaço
e desistência na indolência
do corpo
          superficial
                     da entrega.
A terra morta é abandono
em ávidas carícias.
FEITOS
Feito aço: a lâmina assusta
o corpo indefeso.
O olhar perdido em divagação
ao remoer o espaço
zune a lâmina atravessada
na distância do corpo trespassado.
Feito espaço: o aço é remetida
                       vida em cansaço.
PREFERIR
A preferência se apresenta
                          na alteração das cores
                                                 e traços:
destroços do navio
casco submerso
boias
e botes
             mulheres
                 crianças
                      e ratos.
DESENREDO
                    Chovo
                    o tempo
                    dedicado
                    à seca.
Seco a hora enredada.
Falam em catástrofes: finalizo
                                     o inexistente.
Na esterilidade do planeta
aposto verdes plantas
e azuis marítimos: dói
              a água derramada sobre o solo
castigado em vazios. O relógio desperta
o sono irreparável da espécie.
FUGIR
Onde passado
tenso passo
cadenciado
botas sobre pedras
na infância esquecida
em pés n'água
e mãos na árvore
rito e coragem
risco
a vida no mais e menos
da escadaria íngreme
da baixada
pesado passo com que foge
                      de sua vida passada.
REPETIÇÕES
gestos se repetem
na lenta agonia
do olhar sobre a pessoa
que passa ereta e fria
não há o cumprimento formal
no esquecimento e no desânimo
fossem inimigos ou estrangeiros
desconhecidos em árido abrigo
loucos assumidos em  praças
de assustados ladrões
entre árvores
gestos repetidos em adeus
prenunciam a chegada imprópria
e o saber-se longe: é longa
a despedida antes do embarque
CRESCIMENTO
A criança
    chave do crescimento
    hormônio da sempre vida
no orgasmo em que o pai
                   personagem
                   deposita em sua mãe
            fúlgida companheira
                       das primeiras horas
                       em todas as noites
no acelerado infinito
a criança cresce problemas
no desabrochar adulto isento
                                      de culpas
na robotização das letras
inconsumidas em regras
                               e regulamentos
o pai insiste no momento do espasmo
e a mãe se esconde sob o corpo
                    na entrega da razão
                           e na fé dos cometas
ao filho resta remediados efeitos
no tédio da presença em frentes
de batalhas onde se iguala
                           em arrependimentos.
LOUCURA
estranhos anúncios
mal feitos na execução
da ilusão - extrema -
da possibilidade
de mudanças
nada muda: o fogo
e a violência cristalizam
o fim em resultado
inconsistente
o animal se aferra
na derrubada da última
esperança de convivência
FIM
Retorcido o ferro
obedece e sustenta
estrutura maiores
oxidado desmancha
no que se deforma
enferrujado corpo
em finas partículas
na dor de quem sabe
que tudo acaba.
PASSADO
Onde armazeno as coisas
desprovidas de matéria: acode ao cego
                                  a bengala
                                      o cachorro
                                 acorre ao surdo
                            em sinais e gestos
escondo na criança o crescer e a seriedade
em gavetas trancadas
                  o mistério transparece
                  na mão conduzida em chaves
apelo ao senso
           o desuso e a catraca
arrepia o sujo
           a água e a macela
ausentam o corpo
           a matéria e a ilusão
roubam do portador a entrada
forço a gaveta
            minha mão é forte
e avanço lerdo o caminho no instante
atravessado ao mundo
            a conversa e o barulho
acendem o fogo
            na imagem e gosto
jogados aos mortos
a ventura recupera meu medo
em conversas baixas
           o silêncio impera.
AMAR
Sou o castigo
em postiça forma
culpada na tipicidade do ato
amo
   como amam os insanos
   - como os vejo amando -
em inimagináveis fases
de fragmento e enlevo
torço o rosto ao desgosto
da lâmina brilhante sobre a face
no assalto concluído em fuga
fuga de sentimentos
irrealizados em ondas
deletérias de paixão
retoco a tinta no sentido
do vento a balançar a flor
sobre a amurada
da minha ausência
amo
sendo o amor
             agora.

.

Fonte:

O Autor

Antologia Jovem Escritor de Teófilo Ottoni/MG (Crônicas) II

Posted: 04 Apr 2014 07:53 AM PDT

ANA CLARA BLANC
Ensino Médio da Escola Particular Santo Agostinho
Preserve hoje para colher amanhã

O meio ambiente comumente chamado apenas de ambiente, envolve todas as coisas vivas e não vivas que ocorrem na terra, ou alguma região dela, que afetam os ecossistemas e a vida dos humanos. Se a temos como benefício, por qual motivo a destruímos? Se nela em que vivemos, em que construímos nossas casas, por que a prejudicar?
Os humanos massacram, destroem o ambiente por qualquer motivo, seja para a própria subsistência ou até mesmo a venda de produtos advindos da natureza, são egocêntricos, pensam que a natureza é apenas uma fonte de onde pode se obter lucro, não a encaram como realmente deve ser vista, como uma forma de vida, em que sua capacidade de regeneração é surpreendentemente rápida e eficaz, mas infelizmente não consegue acompanhar o ritmo de destruição causada sobre ela.
Aquecimento global, queimadas de florestas, poluição dos mares e do ar, desmatamento são problemas a ser tratados urgentemente, porém comum, qualquer pessoa sabe o que é, e nada faz. Ao contrário, sabem o que é, os problemas que trazem e ainda trarão futuramente, ainda assim em vez de tentar combatê–los, apenas os aumentam gradativamente. Cada vez mais vemos mais queimadas, mais desmatamentos, mais indústrias que jogam seu lixo em locais inapropriados, indústrias que lançam gases poluentes na nossa atmosfera e ficamos parados.
Desde o início dos tempos, pensadores destacam a importância da natureza para nossa vida, alguns chegaram até citá–la como princípio formador da vida, como o filósofo Thales de Mileto e aqui estamos, séculos depois, em vez de desenvolvermos essa ideia, e proteger a nossa “mãe” estamos apenas a destruindo; onde está a lógica em destruir o nosso lar, o nosso criador? A cada árvore cortada, a cada gás lançado, a cada litro de água poluída, uma parte de nossa vida se vai, pois ao prejudicar a natureza, nós nos prejudicamos, estamos na verdade nos destruindo.
Fonte:
3a. Antologia Jovem Escritor. Academia de Letras de Teófilo Ottoni.
Participação dos estudantes do ensino fundamental, médio e superior classificados no 3º Prêmio Jovem Escritor promovido, em 2013, pela Academia de Letras de Teófilo Otoni, União Estudantil de Teófilo Otoni e o Movimento Pró Rio Todos os Santos e Mucuri.

Dáguima Collection - Trova 5

Posted: 04 Apr 2014 07:50 AM PDT

Machado de Assis (As Academias de Sião)

Posted: 04 Apr 2014 07:48 AM PDT

Conhecem as academias de Sião? Bem sei que em Sião nunca houve academias: mas suponhamos que sim, e que eram quatro, e escutem-me.
I
As estrelas, quando viam subir, através da noite, muitos vagalumes cor de leite, costumavam dizer que eram os suspiros do rei de Sião, que se divertia com as suas trezentas concubinas. E, piscando o olho umas às outras, perguntavam: — Reais suspiros, em que é que se ocupa esta noite o lindo Kalaphangko? Ao que os vagalumes respondiam com gravidade: — Nós somos os pensamentos sublimes das quatro academias de Sião; trazemos conosco toda a sabedoria do universo.
Uma noite, foram em tal quantidade os vagalumes, que as estrelas, de medrosas, refugiaram-se nas alcovas, e eles tomaram conta de uma parte do espaço, onde se fixaram para sempre com o nome de via-láctea.
Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que não cuidava de outra coisa. Daí a ilusão das estrelas.
Vai senão quando, uma das academias achou esta solução ao problema: — Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados.
— Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste exterior.
Não foi preciso mais para que as vielas e águas de Bangkok se tingissem de sangue acadêmico. Veio primeiramente a controvérsia, depois a descompostura, e finalmente a pancada. No princípio da descompostura tudo andou menos mal; nenhuma das rivais arremessou um impropério que não fosse escrupulosamente derivado do sânscrito, que era a língua acadêmica, o latim de Sião. Mas dali em diante perderam a vergonha. A rivalidade desgrenhou-se, pôs as mãos na cintura, baixou à lama, à pedrada, ao murro, ao gesto vil, até que a academia sexual, exasperada, resolveu dar cabo das outras, e organizou um plano sinistro... Ventos que passais, se quisesseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular desforra. Os acadêmicos armaram-se em segredo, e foram ter com os outros, justamente quando estes, curvados sobre o famoso problema, faziam subir ao céu uma nuvem de vagalumes.
Nem preâmbulo, nem piedade. Caíram-lhes em cima, espumando de raiva. Os que puderam fugir, não fugiram por muitas horas; perseguidos e atacados, morreram na beira do rio, a bordo das lanchas, ou nas vielas escusas. Ao todo, trinta e oito cadáveres. Cortaram uma orelha aos principais, e fizeram delas colares e braceletes para o presidente vencedor, o sublime U-Tong. Ébrios da vitória, celebraram o feito com um grande festim, no qual cantaram este hino magnífico: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a luminária do universo." A cidade acordou estupefata. O terror apoderou-se da multidão. Ninguém podia absolver uma ação tão crua e feia; alguns chegavam mesmo a duvidar do que viam... Uma só pessoa aprovou tudo: foi a bela Kinnara, a flor das concubinas régias.
II
Molemente deitado aos pés da bela Kinnara, o jovem rei pedia-lhe uma cantiga.
— Não dou outra cantiga que não seja esta: creio na alma sexual.
— Crês no absurdo, Kinnara.
— Vossa Majestade crê então na alma neutra? — Outro absurdo, Kinnara. Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual.
— Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nenhuma delas? — Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o sol e a luz do universo.
— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma neutra, e punir a academia viva, ou crer na alma sexual, e absolvê-la.
— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte da sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia, foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, aos mandarins, a todo o reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.
III
Entretanto, a bela Kinnara tinha um plano engenhoso e secreto. Uma noite, como o rei examinasse alguns papéis do Estado, perguntou-lhe ela se os impostos eram pagos com pontualidade.
— Ohimé! exclamou ele, repetindo essa palavra que lhe ficara de um missionário italiano. Poucos impostos têm sido pagos. Eu não quisera mandar cortar a cabeça aos contribuintes... Não, isso nunca... Sangue? sangue? não, não quero sangue...
— E se eu lhe der um remédio a tudo? — Qual? — Vossa Majestade decretou que as almas eram femininas e masculinas, disse Kinnara depois de um beijo. Suponha que os nossos corpos estão trocados. Basta restituir cada alma ao corpo que lhe pertence. Troquemos os nossos...
Kalaphangko riu muito da ideia, e perguntou-lhe como é que fariam a troca. Ela respondeu que pelo método Mukunda, rei dos hindus, que se meteu no cadáver de um brâmane, enquanto um truão se metia no dele Mukunda, — velha lenda passada aos turcos, persas e cristãos. Sim, mas a fórmula da invocação? Kinnara declarou que a possuía; um velho bonzo achara cópia dela nas ruínas de um templo.
— Valeu? — Não creio no meu próprio decreto, redarguiu ele rindo; mas vá lá, se for verdade, troquemos... mas por um semestre, não mais. No fim do semestre destroçaremos os corpos.
Ajustaram que seria nessa mesma noite. Quando toda a cidade dormia, eles mandaram vir a piroga real, meteram-se dentro e deixaram-se ir à toa. Nenhum dos remadores os via. Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.
— Pronto? disse Kalaphangko.
— Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade da minha pessoa...
Mas a alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e penetrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real. Ambos os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que assombro. Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua metamorfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três. Buoso e a cobra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados, continuam a falar e a viver juntos — coisa evidentemente mais dantesca, em que me pese à modéstia.
— Realmente, disse Kalaphangko, isto de olhar para mim mesmo e dar-me majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa? Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada.
Kalaphangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara. Esta inteiriçava-se no tronco rijo de Kalaphangko. Sião tinha, finalmente, um rei.
IV
A primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do Kalaphangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual. Não elevou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de pensamento que de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas decretou que todos se prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins. Além disso, fez-lhes grandes presentes, coisas raras ou de valia, crocodilos empalhados, cadeiras de marfim, aparelhos de esmeralda para almoço, diamantes, relíquias. A academia, grata a tantos benefícios, pediu mais o direito de usar oficialmente o título de Claridade do Mundo, que lhe foi outorgado.
Feito isso, cuidou Kalaphangko da fazenda pública, da justiça, do culto e do cerimonial. A nação começou de sentir o peso grosso, para falar como o excelso Camões, pois nada menos de onze contribuintes remissos foram logo decapitados. Naturalmente os outros, preferindo a cabeça ao dinheiro, correram a pagar as taxas, e tudo se regularizou. A justiça e a legislação tiveram grandes melhoras. Construíram-se novos pagodes; e a religião pareceu até ganhar outro impulso, desde que Kalaphangko, copiando as antigas artes espanholas, mandou queimar uma dúzia de pobres missionários cristãos que por lá andavam; ação que os bonzos da terra chamaram a pérola do reinado.
Faltava uma guerra. Kalaphangko, com um pretexto mais ou menos diplomático, atacou a outro reino, e fez a campanha mais breve e gloriosa do século. Na volta a Bangkok, achou grandes festas esplêndidas. Trezentos barcos, forrados de seda escarlate e azul, foram recebê-lo. Cada um destes tinha na proa um cisne ou um dragão de ouro, e era tripulado pela mais fina gente da cidade; músicas e aclamações atroaram os ares. De noite, acabadas as festas, sussurrou ao ouvido a bela concubina: — Meu jovem guerreiro, paga-me as saudades que curti na ausência; dize-me que a melhor das festas é a tua meiga Kinnara.
Kalaphangko respondeu com um beijo.
— Os teus beiços têm o frio da morte ou do desdém, suspirou ela.
Era verdade, o rei estava distraído e preocupado; meditava uma tragédia. Ia-se aproximando o termo do prazo em que deviam destrocar os corpos, e ele cuidava em iludir a cláusula, matando a linda siamesa. Hesitava por não saber se padeceria com a morte dela visto que o corpo era seu, ou mesmo se teria de sucumbir também. Era esta a dúvida de Kalaphangko; mas a idéia da morte sombreava-lhe a fronte, enquanto ele afagava ao peito um frasquinho com veneno, imitado dos Bórgias.
De repente, pensou na douta academia; podia consultá-la, não claramente, mas por hipótese. Mandou chamar os acadêmicos; vieram todos menos o presidente, o ilustre UTong, que estava enfermo. Eram treze; prosternaram-se e disseram ao modo de Sião: — Nós, desprezíveis palhas, corremos ao chamado de Kalaphangko.
— Erguei-vos, disse benevolamente o rei.
— O lugar da poeira é o chão, teimaram eles com os cotovelos e joelhos em terra.
— Pois serei o vento que subleva a poeira, redarguiu Kalaphangko; e, com um gesto cheio de graça e tolerância, estendeu-lhes as mãos.
Em seguida, começou a falar de coisas diversas, para que o principal assunto viesse de si mesmo; falou nas últimas notícias do ocidente e nas leis de Manu. Referindo-se a UTong, perguntou-lhes se realmente era um grande sábio, como parecia; mas, vendo que mastigavam a resposta, ordenou-lhes que dissessem a verdade inteira. Com exemplar unanimidade, confessaram eles que U-Tong era um dos mais singulares estúpidos do reino, espírito raso, sem valor, nada sabendo e incapaz de aprender nada. Kalaphangko estava pasmado. Um estúpido? — Custa-nos dizê-lo, mas não é outra coisa; é um espírito raso e chocho. O coração é excelente, caráter puro, elevado...
Kalaphangko, quando voltou a si do espanto, mandou embora os acadêmicos, sem lhes perguntar o que queria. Um estúpido? Era mister tirá-lo da cadeira sem molestá-lo.
Três dias depois, U-Tong compareceu ao chamado do rei. Este perguntou-lhe carinhosamente pela saúde; depois disse que queria mandar alguém ao Japão estudar uns documentos, negócio que só podia ser confiado a pessoa esclarecida. Qual dos seus colegas da academia lhe parecia idôneo para tal mister? Compreende-se o plano artificioso do rei: era ouvir dois ou três nomes, e concluir que a todos preferia o do próprio U-Tong; mas eis aqui o que este lhe respondeu: — Real Senhor, perdoai a familiaridade da palavra: são treze camelos, com a diferença que os camelos são modestos, e eles não; comparam-se ao sol e à lua. Mas, na verdade, nunca a lua nem o sol cobriram mais singulares pulhas do que esses treze...
Compreendo o assombro de Vossa Majestade; mas eu não seria digno de mim se não dissesse isto com lealdade, embora confidencialmente...
Kalaphangko tinha a boca aberta. Treze camelos? Treze, treze. U-Tong ressalvou tão-somente o coração de todos, que declarou excelente; nada superior a eles pelo lado do caráter. Kalaphangko, com um fino gesto de complacência, despediu o sublime U-Tong, e ficou pensativo. Quais fossem as suas reflexões, não o soube ninguém. Sabe-se que ele mandou chamar os outros acadêmicos, mas desta vez separadamente, a fim de não dar na vista, e para obter maior expansão. O primeiro que chegou, ignorando aliás a opinião de UTong, confirmou-a integralmente com a única emenda de serem doze os camelos, ou treze, contando o próprio U-Tong. O segundo não teve opinião diferente, nem o terceiro, nem os restantes acadêmicos. Diferiam no estilo; uns diziam camelos, outro usavam circunlóquios e metáforas, que vinham a dar na mesma coisa. E, entretanto, nenhuma injúria ao caráter moral das pessoas. Kalaphangko estava atônito.
Mas não foi esse o último espanto do rei. Não podendo consultar a academia, tratou de deliberar por si, no que gastou dois dias, até que a linda Kinnara lhe segredou que era mãe. Esta notícia fê-lo recuar do crime. Como destruir o vaso eleito da flor que tinha de vir com a primavera próxima? Jurou ao céu e à terra que o filho havia de nascer e viver.
Chegou ao fim do semestre; chegou o momento de destroçar os corpos.
Como da primeira vez, meteram-se no barco real, à noite, e deixaram-se ir águas abaixo, ambos de má vontade, saudosos do corpo que iam restituir um ao outro. Quando as vacas cintilantes da madrugada começaram de pisar vagarosamente o céu, proferiram eles a fórmula misteriosa, e cada alma foi devolvida ao corpo anterior. Kinnara, tornando ao seu, teve a comoção materna, como tivera a paterna quando ocupava o corpo de Kalaphangko.
Parecia-lhe até que era ao mesmo tempo mãe e pai da criança.
— Pai e mãe? repetiu o príncipe restituído à forma anterior.
Foram interrompidos por uma deleitosa música, ao longe. Era algum junco ou piroga que subia o rio, pois a música aproximava-se rapidamente. Já então o sol alagava de luz as águas e as margens verdes, dando ao quadro um tom de vida e renascença, que de algum modo fazia esquecer aos dois amantes a restituição física. E a música vinha chegando, agora mais distinta, até que, numa curva do rio, apareceu aos olhos de ambos um barco magnífico, adornado de plumas e flâmulas. Vinham dentro os quatorze membros da academia (contando U-Tong) e todos em coro mandavam aos ares o velho hino: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a claridade do mundo!" A bela Kinnara (antigo Kalaphangko) tinha os olhos esbugalhados de assombro.
Não podia entender como é que quatorze varões reunidos em academia eram a claridade do mundo, e separadamente uma multidão de camelos. Kalaphangko, consultado por ela, não achou explicação. Se alguém descobrir alguma, pode obsequiar uma das mais graciosas damas do Oriente, mandando-lha em carta fechada, e, para maior segurança, sobrescrita ao nosso cônsul em Xangai, China.
Fonte:
www.dominiopublico.gov.br

Academia Paranaense da Poesia (Boletim de abril de 2014)

Posted: 04 Apr 2014 07:43 AM PDT

ACADEMIA PARANAENSE DA POESIA Antiga Sala do Poeta, fundada em 7 de abril de 1973, por  Pompília Lopes dos Santos – Academia Paranaense da Poesia  desde  17 de  setembro  de  2002.
“Os  livros são os túmulos dos que não podem morrer”
                                        George Crabbe


OFICINA PERMANENTE DE POESIA

Projeto da Academia Paranaense da Poesia em parceria com a Biblioteca Pública do Paraná – VOLUNTARIADO DA POESIA desde 2002 (de março a junho e de agosto a novembro) – todas as quintas-feiras – das 18 às 19h: Aula sobre Poesia por um dos poetas da nossa Academia ou de outros poetas do Paraná ou do Brasil; das 19 às 19:45h: Declamação de Poemas pelos participantes da Oficina.  Rua Cândido Lopes, 133 - 3º andar - Centro.

10- A POESIA DE GONÇALVES DIAS -  Poeta  Mamed  Zauíth
17 - VÉSPERA DE FERIADO – NÃO HAVERÁ OFICINA
24- UBT- OFICINA DE TROVA – Trovadora Andrea Motta
TARDE DA SERESTA
12/04 –das  17:30h às  21h: no Restaurante San Domingos – Rua Voluntários da Pátria, 368, 1º andar – (antiga Confeitaria Iguaçu) – Café Colonial
TARDE DE MÚSICA E POESIA
15/04 – 17:00h – no Centro de Letras do Paraná – Rua Prof. Fernando Moreira, 370 –   Centro – O quadro  5 minutos com meu Patrono será apresentado pela Acadêmica Anna Maria  Rocha,  da cadeira nº  4 das Artes Plásticas.
ALMOÇANDO COM MÚSICA E POESIA
26/04 – às 12:30h – no Restaurante  Prato Fino – Rua José Loureiro,  385, Centro (entre as Ruas Monsenhor Celso e Barão do Rio Branco) – Buffet por quilo – Confirmar presença até  24 de abril.
ANIVERSARIANTES DO MÊS DE ABRIL NA GALERIA DA SAUDADE:
06 – Aluísio França;
14 – Silvas do Brasil;  
23 – Walfrido Pilotto.
Sua presença e sua alegria fazem a festa da Poesia.
Roza de Oliveira
Presidente

Tânia Du Bois (Lançamento do Livro "O Exercício das Vozes")

 

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José Vieira (Lançamento de “Sozinho não sou ninguém”, em Formiga/MG)

Posted: 04 Apr 2014 07:10 AM PDT

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